Considerações Sobre o
Comportamento dos Indicadores Sociais da População Auto-Declarada Preta e
Parda: análise de evidências preliminares[1]
Marcelo Paixão[2]
Luiz Marcelo Carvano[3]
Não é novidade que
o modelo brasileiro de relações raciais cria e reproduz desigualdades entre as
pessoas brancas e negras. De todo modo, podemos perceber que esta conclusão
ainda padece de uma lacuna a qual justamente tentaremos refletir ao longo do
presente artigo. Trata-se de entender qual o comportamento dos indicadores sociais
apresentados pela população que se auto-declara aos entrevistadores do IBGE
como preta e parda.
Por um lado, existe
uma tradição presente no interior do pensamento social brasileiro que aponta
que, em nosso país, os pardos ocupam um local diferenciado no interior de nossa
pirâmide social. Deste modo, recuperando os termos de Carl Degler, este agente
teria a sua disposição uma válvula de escape para evitar as formas mais duras
de discriminação que se abateriam sobre os negros portadores de marcas raciais
mais intensivamente negróides[4].
Contudo, a partir dos estudos de Hasenbalg (1979) e Valle Silva (1980),
baseados nos indicadores demográficos dos distintos grupos de raça/cor da
população brasileira, foi evidenciado um outro aspecto desta mesma realidade.
Isto é, os índices sociais dos auto-declarados pretos e dos auto-declarados
pardos seriam antes convergentes do que discrepantes[5].
Destarte, de acordo com as conclusões de Valle Silva (op cit) baseado em uma
amostra de 1,27% do Censo de 1960, “(n)em
os mulatos parecem ser inequivocamente diferenciados dos negros, nem raça
parece desempenhar um papel desprezível na distribuição de renda. Pelo
contrário, observamos que os brancos parecem desfrutar vantagens substanciais
no mercado de trabalho, sendo, assim, claramente diferenciados dos não-brancos”.
Deste modo o estado da arte do estudo das desigualdades raciais brasileiras,
baseado nos dados demográficos, acabou apontando para uma bi-polaridade básica
dos indicadores dos brancos, por um lado, e dos pretos e dos pardos, por outro
lado.
Antes de
avançarmos, é importante precisar que a polêmica se restringe a este ponto
específico. Ou seja, sobre o comportamento dos indicadores dos pretos e dos
pardos. Deste modo partimos do estado da arte sobre o tema das iniqüidades
sociais que, balizado em inúmeros trabalhos, já demonstrou sobejamente o fato
de que negros (pretos e pardos) e brancos formam grupos de status
diferenciados, da modalidade do preconceito racial no Brasil ser de marcas
raciais e que as normas de imagem
somática, usando o termo originalmente empregado por Hoetink[6],
são critérios decisivos em termos das trajetórias educacionais, ocupacionais e
matrimoniais que os distintos indivíduos, portadores das distintas marcas
raciais, poderão esperar percorrer ao longo do seu ciclo de vida. Não obstante,
a questão que estamos problematizando é que a teoria que informa que em nosso
país o preconceito racial variaria em intensidade, de acordo com as marcas
raciais, não estaria encontrando tradução nos dados empíricos da realidade, na
qual os índices apresentados pelos pretos e pelos pardos revelaram-se
semelhantemente distantes dos indicadores sociais dos brancos.
Visando entender
melhor esta problemática, analisamos o comportamento de alguns indicadores sociais
dos grupos de raça/cor em nosso país. Assim, o esforço consistiu em fazer um
levantamento preliminar em quais tipos de indicadores as condições de vida de
pretos e pardos convergem e não convergem. Este exercício, apresentado aqui na
sua versão resumida, será baseado em um conjunto selecionado de indicadores de
natureza variada, aqui reunidos em duas grandes dimensões: indicadores demográficos e
vitais e indicadores de qualidade de
vida. As bases de dados mobilizadas neste artigo foram os microdados da amostra
do Censo Demográfico de 1980, 1991 e 2000, além do Sistema de Informação de
Mortalidade, produzido pelo Ministério da Saúde.
A partir das
evidências que levantamos, pudemos notar o comportamento antagônico dos dois
grupos de indicadores. Os indicadores demográficos e vitais (representados pelo
crescimento populacional, distribuição territorial da população, distribuição
etária da população, razão de sexo, adesão às religiões de matrizes
afro-brasileiras, razão de mortalidade por 100 mil habitantes, com exceção de
causas externas e causas desconhecidas de óbitos) apresentaram significativas
disparidades, isto é, os dados de pretos e pardos apresentam-se divergentes.
Em contrapartida,
os indicadores de Qualidade de Vida (representados pelo rendimento médio dos
decis de renda, composição racial dos decis de renda, percentual e níveis de
intensidade de pobreza e indigência, Índice de Desenvolvimento Humano e
indicadores de acesso aos bens de uso coletivo - abastecimento de água em
condições adequadas, esgotamento sanitário, coleta do lixo, residências em
favelas, qualidade do material de construção dos domicílios e razão de
mortalidade por causas externas e homicídios) apresentaram uma tendência a
convergir.
É importante
salientar que a densidade sociológica das informações relativas aos Indicadores
Demográficos não é muito grande. Na verdade, este tipo de indicador, que os
teóricos de Chicago chamariam de ecologia
humana, apenas evidencia como a população evoluiu numericamente, como está
distribuída espacialmente etc. Assim, somente de forma muito indireta estes
dados trazem informações acerca do padrão de vida destes contingentes. Por
outro lado, os indicadores referentes às razões de mortalidade e de adesão às
religiões de matrizes afro-brasileiras guardam uma importância maior do ponto
de vista teórico, tendo em vista poderem estar refletindo diferenças no padrão
de vida entre os contingentes auto-declarados pretos e pardos.
Por outro lado, os
indicadores de pretos e pardos tendem a convergir quando reportados aos indicadores de qualidade de vida. Neste
caso o gradiente de cor refletida, entre outros autores, por Oracy Nogueira não
tenderia a fazer grandes diferenças nas condições de existência de pretos e
pardos. Ou seja, a partir do momento em que a pessoa não consegue passar por branca social, as normas de imagem somática – recuperando o termo de Hoetink (op cit)
– acabam sendo igualmente determinantes do ciclo de vida dos indivíduos pretos
e pardos, tendo em vista a presença de práticas preconceituosas e
discriminatórias que incidem sobre estas pessoas no mercado de trabalho,
espaços escolares, acesso aos recursos públicos, investimentos nas suas áreas
de residência, exposição à violência, entre outras questões.
Não obstante, as
pistas avançadas ao longo do presente artigo nos permitem afirmar que, pelo
menos quando lidos em sua dimensão nacional, os termos originais empregados por
Oracy Nogueira do preconceito racial de marca, não se contrapõem
necessariamente às conclusões dos trabalhos de Hasenbalg e Valle e Silva. Ou
antes, as evidências coligidas sugeriram que ambas as contribuições podem ser
vistas de forma complementares, todas duas apontando para aspectos específicos
do modo de incidência do preconceito e da discriminação sobre o conjunto dos
afrodescendentes brasileiros portadores de marcas raciais mais intensivamente
negras.
Assim, ao menos
hipoteticamente, poderíamos supor que determinados indicadores sociais
discrepantes apresentados por pretos e pardos estariam refletindo intensidades desiguais
de preconceito de marca. Todavia,
confirmando o que mais ou menos expressa a literatura a esse respeito, a
semelhança dos indicadores apresentados pelos grupos pretos e pardos no que
tange ao acesso ao mercado de trabalho, sistema educacional, de saúde e a
segurança pública, etc, podem estar revelando que as seqüelas do preconceito
racial que se volta contra os pretos e os pardos atuariam de forma igualmente
prejudicial, pouco importante a intensidade das marcas raciais.
Voltamos a
salientar que estas discrepâncias encontradas devem ser analisadas de modo mais
aprofundadas em outros estudos, buscando desta vez incorporar as variantes
regionais destes dados, a aplicação de testes mais sofisticados do ponto de
vista estatístico e econométrico, bem como introduzindo outros grupos de
indicadores ausentes do presente esforço. Além disso, há de ser salientado que
em outros tantos casos a agregação de pretos e pardos dentro de um mesmo
conjunto terá de ser feita – independentemente de outras considerações – tendo
em vista problemas de consistência estatística da amostra das pesquisas
(especialmente para os auto-declarados pretos), tal como é o caso da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e da Pesquisa Mensal de Emprego
(PME), realizadas pelo IBGE.
De todo modo,
consideramos que dessas evidências preliminares podemos desdobrar um conjunto
de interessantes reflexões acerca do comportamento dos indicadores sociais de
pretos e pardos em nosso país, bem como sobre o modelo local de preconceito racial
que incide sobre esses contingentes.
[1]
Esse artigo está baseado no capítulo 9 da Tese de Doutorado de PAIXÃO, Marcelo
(2005) – Crítica da razão culturalista: relações raciais e a construção das
desigualdades sociais no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ (Tese de Doutorado em
Sociologia). 445 p.
[2]
Professor Adjunto do Instituto de Economia da UFRJ. Coordenador do Laboratório
de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais - LAESER
[3]
Pesquisador do LAESER – IE - UFRJ
[4]
DEGLER, Carl (1976 [1971]) – Nem preto nem branco: escravidão e relações
raciais no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editorial Labor do
Brasil (trad. Fanny Wrobel).
[5]
HASENBALG, Carlos (1979) – Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal (trad. Patrick Burglin). VALLE SILVA, Nelson (1980) – O
preço da cor: diferenciais raciais na distribuição da renda no Brasil. Rio
de Janeiro: Pesquisa e Planejamento Econômico 10 (1), Abril (p.p. 21-44).
[6] HOETINK, Harold (1971 [1967]) – Caribbean race
relations: a study of two variants. London / Oxford / New York: Oxford
University Press (translated from the Dutch by Eva Hooykaas)
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