Crise na Crimeia pode reacender conflitos adormecidos na Europa
- 19 março 2014
A situação atual na Crimeia não apenas evidencia o que muitos veem como renovadas ambições expansionistas da Rússia de Vladimir Putin. Também desperta preocupação entre os vizinhos de Moscou no Leste Europeu e traz à tona conflitos "congelados" no tempo e originados após o desmantelamento da União Soviética, em 1991.
O avanço rumo à anexação da região autônoma ucraniana da Crimeia acontece apenas um mês após a destituição do presidente ucraniano Viktor Yanukovych - aliado de Moscou -, após violentos protestos contra ele.
O motivo por trás dos protestos foi a recusa de Yanukovych em assinar um tratado de aproximação com a União Europeia (UE), preferindo manter a relação próxima com a Rússia.
Muitos dizem que Putin quer conter a influência dos Estados Unidos e da UE com uma espécie de União da Eurásia.
Desde que ele chegou ao poder, em 2000, sua meta é voltar a fazer de Moscou uma grande potência global.
"A ideia não é recriar a União Soviética, mas sim rodear a Rússia com uma série de (países) satélites submissos - e não há maior prêmio nessa busca do que Ucrânia", disse Eugen Rumer, ex-oficial de inteligência dos Estados Unidos na Eurásia e hoje do Fundo Carnegie para a Paz Internacional.
Para o professor de direito internacional da Universidade de Cambridge Marc Weller, a Crimeia faz parte da "lista de conflitos congelados no Leste Europeu".
E a instabilidade já vista em conflitos nos territórios da Ossétia do Sul e Abkházia tornam mais urgente a necessidade de uma solução definitiva para a Crimeia, afirma Weller.
Cáucaso
A Ossétia do Sul e a Abkházia, cuja independência é apoiada pela Rússia, são territórios reivindicados pela Geórgia.
Em 2008, Moscou usou a maioria russa na Ossétia como justificativa para atacar as tropas da Geórgia, que tentavam recuperar o controle da região separatista.
O Exército russo também forçou a saída das tropas georgianas da Abkházia.
Agora, com argumento similar, a Rússia interveio na Crimeia. E, assim como no caso da Geórgia, Moscou ressente o interesse da União Europeia na Ucrânia.
Seis anos após o conflito com a Geórgia, a situação na região segue instável.
O plano de paz patrocinado pela UE para os dois territórios, negociado pelo ex-presidente francês Nicolas Sarkozy, em 2008, foi o equivalente a pouco mais que a ratificação dos resultados da invasão russa, opina Weller.
Dois anos antes, a Ossétia do Sul havia realizado um referendo que alguns comparam ao da Crimeia. O resultado foi um amplo apoio à criação de um Estado independente. No entanto, apenas Rússia, Venezuela, Nicarágua, Nauru e Tuvalu reconheceram o resultado.
Transnístria
Outro caso que pode ter paralelos com a atual crise da Crimeia é o do enclave chamado Transnístria, território separatista entre a Moldávia e a Ucrânia.
Na prática, a Transnístria se separou da Moldávia e a maioria de sua população fala russo. Há relatos de que as autoridades locais pediram ao Parlamento russo por uma anexação, e um referendo em 2006 respaldou a intenção de pertencer à Rússia.
A comunidade internacional não reconhece sua independência, e o território, que mantém um tenso enfrentamento com a Moldávia, é tido como uma região dominada pelo crime organizado e pelo contrabando.
A Transnístria tem moeda, Constituição, hino, bandeira e Parlamento próprios. E, assim como na Crimeia, a Rússia tem milhares de soldados ali.
A relação de Moscou com a Moldávia é marcada pelo ponto fraco do pequeno país, a economia (semelhante à relação entre Moscou e Ucrânia).
A Moldávia é o país mais pobre da Europa, e sua economia depende em grande parte da exportação de vinho. A UE quer integrá-lo à Associação Oriental, programa do bloco de aproximação com ex-repúblicas soviéticas ao leste, como Belarus, Azerbaijão, Armênia, Geórgia e Ucrânia.
Mas, quando o país começou a se aproximar do Ocidente, a Rússia - seu principal mercado - vetou a importação do vinho moldávio.
Foi esse mesmo tipo de aproximação com a UE que foi rejeitada por Yanukovych na Ucrânia, desencadeando protestos da parte da população que é pró-Ocidente.
Presença russa no Báltico
Estônia, Letônia e Lituânia, as três repúblicas bálticas que pertenceram à União Soviética durante 51 anos, também acompanham de perto os desdobramentos na Crimeia.
Em 2004, os três se uniram à UE e à Otan (aliança militar ocidental), uma afronta a Putin.
A presença de uma significativa minoria étnica russa é um tema delicado nos países bálticos, que em grande medida dependem do gás russo.
Na Estônia, os russos representam até um terço da população, e muitos se queixam de preconceito. Na Letônia, 25% do povo fala russo, e seus direitos são um tema espinhoso no país.
A presidente lituana, Dalia Grybauskaite, disse recentemente que "graças a Deus (o país) tem mais de dez anos na Otan".
"A Rússia está tentando reestabelecer as fronteiras que tínhamos depois da Segunda Guerra Mundial", queixou-se a presente - alegando que, após a Ucrânia, Moscou se moveria em direção aos países Bálticos e à Polônia.
Os Estados Unidos mandaram reforços militares à região, e o vice-presidente Joe Biden visita Lituânia e Polônia nesta semana para discutir a crise ucraniana.
Temor polonês
Também na Polônia existe uma sensação generalizada de insegurança. Em pesquisa recente, 59% dos entrevistados opinaram que a política externa russa ameaça a segurança do país.
"Me sinto ameaçado pela Rússia porque estamos do lado", disse à BBC o polonês Michal, de 30 anos. "A Ucrânia foi a primeira, os países bálticos virão a seguir e logo Putin fará algo ruim aqui."
"Acho que há uma sensação de que certos limites foram ultrapassados, que precedentes foram abertos e que graças a isso não se sabe onde Putin vai parar", disse à BBC Marcin Zaborowski, diretor do Instituto Polonês de Assuntos Internacionais.
Avanço na Ucrânia?
Fora a Crimeia - região transferida por Moscou à Ucrânia em 1954, quando esta era parte da União Soviética -, nas cidades ucranianas de Donestk e Kharkiv, onde também há uma grande população de etnia russa, há debates sobre referendos semelhantes para se unir à Rússia.
"Se houver mais referendos relâmpagos, será que serão enviados para lá soldados russos - que agora estão nas fronteiras da Ucrânia em nome da proteção dos russos étnicos frente aos 'provocadores' de Kiev -, como aconteceu na Crimeia?", questiona na revista New Yorker o jornalista Jon Lee Anderson.
Alguns meios de comunicação russos começam a se referir a uma ampla zona do sul da Ucrânia como "Novorossiva", ou "Nova Rússia". Anos atrás, em 2008, Putin dissera a líderes da Otan que ali havia "apenas russos".
A consultoria política Eurasia Group calcula em 40% a probabilidade de que a Rússia invada o leste ucraniano.
Nesta terça, Putin declarou que essa não é sua intenção: "A Rússia não quer dividir a Ucrânia. Não precisamos disso".
No entanto, qualquer novo avanço russo certamente aumentará as tensões e e temores sobre o ressurgimento de um novo tipo de Guerra Fria - além de deixar o Ocidente em uma encruzilhada sobre como responder à situação.
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