Qualquer pessoa com noções básicas de recursos hídricos sabe que tão importante quanto ter água em quantidade é ter água em qualidade. Apesar disso, em pleno século 21, o Brasil ainda deixa de coletar e tratar mais da metade dos esgotos que gera.
Na ponta do lápis, apenas 48,6% dos brasileiros têm acesso à rede coletora de esgoto, enquanto somente 39% do total de efluentes gerados em todo o país recebe tratamento. Os dados, referentes ao ano de 2013, foram atualizados recentemente no Sistema Nacional de Informações de Saneamento Básico do Ministério das Cidades.
O saldo dessa equação é simples: o esgoto que não é coletado nem tratado tem passe livre para poluir o meio ambiente, o que compromete a disponibilidade de água limpa e encarece os custos de tratamento.
Em meio à crise hídrica histórica que castiga a região Sudeste, o quadrilátero mais rico do país, os números do descaso com a água e seu tratamento são, no mínimo, assombrosos e não condizem com um país que se gaba de estar entre as dez maiores economias do mundo.
“Há uma total incompatibilidade entre o nosso desenvolvimento econômico e o que o há de mais básico, que é o saneamento. Em termos de esgoto, o Brasil parou no século 19. Descuidamos totalmente. Passamos décadas sem tratamento, usando a diluição na água como solução. Seguindo a ideia do ‘Joga no rio que o rio resolve’, transformamos nossos rios em lixões a céu aberto. Agora, colhemos os frutos dessa política”, avalia Edison Carlos, Presidente do Instituto Trata Brasil, ONG de referência na área.
Desprovida do serviço essencial, metade da população brasileira tem que conviver com valões de esgoto a céu aberto, fossas negras e rios fétidos que foram transformados em depósitos para descarte da sujeira.
Por mais insólito que pareça, existem mais casas no Brasil com um aparelho televisor do que com um banheiro ligado à rede de esgoto (segundo dados do Pnad, a televisão está presente em 97,2% das casas).
DESIGUALDADE HÍDRICA
Outra disparidade é a distribuição regional do acesso à coleta e tratamento. Atravessada pelo maior rio do mundo em volume de água (o Amazonas), a região Norte é a mais desprovida de saneamento adequado: os índices totais de coleta de esgoto e tratamento são, respectivamente, de 6,50% e 14,7%.
O Sudeste possui a maior cobertura: 77,3% da população é atendida pelo serviço, mas só trata 43,9% dos esgotos gerados. No Estado de São Paulo, que atravessa sua maior crise hídrica, apenas 53% do esgoto gerado pelas áreas urbanas recebe tratamento.
Em seguida, aparecem o Centro-Oeste (com 42,2% de coleta total de esgoto e 45,9% para tratamento), o Sul (com 38% e 35,1%, respectivamente) e o Nordeste (com 22,1% de coleta e 28,8% de tratamento).
Regiões | Índice de atendimento total da rede coletora de esgoto | Índice de coleta urbano | Índice de tratamento total de esgoto gerado | Índice de tratamento dos esgotos coletados |
Norte | 6,50% | 8,20% | 14,70% | 85% |
Nordeste | 22,1% | 29,3% | 28,8% | 78,1% |
Sul | 38,0% | 44,2% | 35,1% | 78,9% |
Centro-Oeste | 42,2% | 48,6% | 45,9% | 91,6% |
Sudeste | 77,3% | 82,2% | 43,9% | 64,3% |
Brasil | 48,6% | 56,3% | 39,0% | 69,4% |
SONHO DISTANTE
Sem o apelo tecnológico da telefonia ou a visibilidade da energia elétrica, por aqui, o setor de saneamento foi visto durante muito tempo como o patinho feio da infraestrutura, algo de menor atratividade.
Até mesmo os serviços atribuídos à área seguem compassos desiguais. Em todo país, a expansão das redes coletoras de esgoto é mais lenta do que a expansão doabastecimento de água potável. Segundo dados do Ministério das Cidades, mais de 80% da população do país recebe água dentro dos padrões de segurança e qualidade na torneira de casa, índice superior ao de coleta de esgoto.
“A política de água vem desde a década de 1960 e as empresas sempre se empenharam aí. Afinal, sem água tratada, as cidades não crescem. Água dá voto. Esgoto não dá voto, não tem charme nenhum, é obra enterrada”, comenta Édison, do Trata Brasil.
Foi apenas em 2007 que o Brasil estabeleceu diretrizes nacionais para o Saneamento Básico, por meio da Lei nº 11.445/2007. Essa mesma lei reconheceu o valor universal de acesso à água como um princípio, que alude a uma responsabilização do Estado e dos operadores pelo fornecimento adequado de serviços de água a população do território sobre o qual têm responsabilidade.
Ainda assim foram precisos mais seis anos para o país aprovar, em 2013, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que prevê a universalização do acesso a água potável nas áreas urbanas no decorrer dos próximos dez anos. Já para coleta e tratamento de esgoto, a meta é atender 93% das áreas urbanas até 2033, no melhor cenário.
A necessidade de saneamento para todo o país é urgente, mas o caminho para sua universalização ainda parece um sonho distante.
Foto: Agência Brasil
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Para compreender a crise hídrica (e de energia) – como, quando e por que tudo começou? o que deveria ter sido feito? o que ainda se pode fazer? e como enfrentar o cenário mais dramático – você pode acompanhar as notícias diárias, mas é imprescindível mergulhar nos bons livros sobre o tema também. A partir deles, com certeza será mais fácil selecionar o que é relevante e espalhar boa informação.
Aqui estão sete ótimos títulos da
Estante do
Planeta Sustentável para inspirá-lo. O primeiro é uma obra impressionante de ficção. Mergulhe!
- Escrito por
Inácio de Loyola Brandão em 1981 e relançado em 2007,
Não Verás País Nenhum revela como é um mundo sem água potável, castigado pelo
aquecimento global e controlado pelo Esquema. Qualquer semelhança é mera coincidência? Loyola criou um Ministro das Águas para sua história, mas esse a gente ainda não tem. Ele disse sobre sua obra: “Não faço um livro profético do que virá a ser. Mas do que pode vir a ser”. Em sua resenha, a jornalista Maria Claudia Baima conta: “No diário ele revela que seu lema para escrever é ‘refazer. Refazer sempre’. Deixava a escrita no meio de uma cena para retomar a redação com o mesmo ânimo. A técnica funciona bem. Seguimos Souza (o personagem) com avidez, por mais sufocante que seja a leitura. No final, fechamos o livro com uma vontade secreta de refazer o mundo. Refazer sempre”.
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A Última Gota foi lançado em dezembro de 2014, pela Editora Planeta. Sua autora, a jornalista Vanessa Barbosa, integra a equipe de editores do Portal Exame, da Editora Abril, e mergulhou fundo no tema. Como ressalta Roberto Amado, que resenhou a obra, “muito se fala da crise de água, mas pouco se informa. Este livro corrige essa falha ao esclarecer, por meio de pesquisa extensa, praticamente todas as questões que envolvem seu uso. Ele provoca, enfim, grandes emoções. Para aqueles que preferem não encarar o problema, talvez não seja uma leitura indicada. Para todos os outros, é uma boa oportunidade para conhecer a magnitude que envolve nossa dependência pela água e exigir novos tempos mais sábios”.
- Administrando a Água, como se fosse importante, organizado pelo economista Ladislau Dowbor, conselheiro do Planeta Sustentável, e por Renato Arnaldo Tagnin, também pesquisador reconhecido. “Este não é um livro fácil”, como diz o jornalista Otávio Rodrigues, autor da resenha, “porque os autores são acadêmicos, estudiosos e especialistas. Mas, mesmo sendo um pouco árido – de tantos números que apresenta -, ele nos surpreende seguidamente pelos conhecimentos úteis que reúne. Em tempos difíceis, como estes e os que nos reserva o futuro próximo, se configura um companheiro precioso”;
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Water, the epic struggle for weath, power and civilization (Água, a épica luta pela riqueza, poder e civilização, sem tradução no Brasil) de Steve Salomon, brilhantemente resenhado pelo jornalista Flávio de Carvalho Serpa, falecido no ano passado. Escreveu, ele: “Esta é a primeira obra que tenta contar a milenar história do líquido na evolução da civilização, desde a Babilônia à atual crise de escassez e mudança climática planetária. Com tal cardápio de assuntos, figurou entre os dez best sellers de 2010 na livraria Amazon e é referência que não pode faltar na estante dos interessados na gestão socialmente responsável da água”.
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Água: Pacto Azul – A Crise Global e a Batalha Pelo Controle da água Potável no Mundo, da ativista canadense Maude Barlow. Ela descreve as atividades das grandes corporações de água no mundo e o trabalho de entidades para democratizar seu acesso. “Se algum dia houve uma época ideal para um plano de conservação e justiça da água para lidar com a dupla crise da água – escassez e injustiça – este momento é agora”, afirma Maude, que alerta: “Não falta ao mundo o conhecimento sobre como construir um futuro com garantia de água; o que falta é vontade política”.
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Água, Juridicamente Sustentável, da pesquisadora Clarissa D’Isep. Ela chama a atenção para a importância de se analisar os sistemas hidrojurídicos, sem os quais não teremos uma gestão sustentável da água. Para o autor da resenha, José Eduardo Mendonça, este livro é “uma peça importante para aqueles treinados juridicamente ou em processo de formação na academia, mas que serve, também, como fonte de referência para outras disciplinas, como ecologia e economia, pela riqueza com que a autora esmiuça a água, num intrincado conta-gotas”.
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Atlas da Água, dos pesquisadores americanos Robin Clarke e Jannet King que, em 2005, já alertavam que as guerras do século XXI seriam pela água. Eles falam de escassez e também como 169 países tratam suas águas; entre eles, o Brasil. Vejam que atual o que a jornalista Paula Nadal escreveu sobre a obra em 2007: “Caso medidas efetivas não sejam tomadas e o consumo não seja reduzido, os desastres ecológicos e os desequilíbrios sociais serão cada vez mais acelerados. Qualquer atitude distante da integração e do consumo consciente pode ser a gota d’água. Fenômenos que fazem de O Atlas da Água leitura emergencial, um grito incontido em tempos de crise ambiental”.
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Rios e Cidades: Ruptura e Reconciliação, da estudiosa Maria Cecília Gorski. Bem ilustrado (inclusive com muitos casos brasileiros), didático e bem escrito, o livro propõe soluções para integração e reintegração das pessoas com seus rios. O jornalista José Eduardo Mendonça, que escreveu esta resenha, recomenda a leitura: “Muitas teses de mestrado apresentam leitura difícil pelo uso excessivo de jargões técnicos e pela pouca familiaridade de alguns autores com o português escorreito. Não é o caso aqui. Percebe-se que o trabalho de Gorski é apaixonado – bem documentado, bem ilustrado, didático, bem escrito, daquelas coisas que dá gosto de ter na estante”.
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